terça-feira, 21 de abril de 2009

Solidão

Tinham chegado por ele, despejaram os presentes no hall, perderam o tempo indispensável a perscrutar no seu olhar triste se gostara das coisas habituais, se apreciara o preço de umas e outras, mas rapidamente debandaram para a sala. Afinal a música não podia esperar. Nem as tatuagens e ferros cravados na geografia desordenada dos corpos iguais. Dos gostos similares, dos gestos geminados, dos tiques aprendidos. Tanta gente e tão igual.

Percebeu-se rodeado de espelhos, superfícies onde vogavam rostos disformes, mesmo quando belos. Os mesmos grunhidos, as mesmas unhas decalcadas por calistas suburbanas, os mesmos modos. Saiu de casa sem se despedir das dezenas de pessoas que lhe lotavam a casa. Acenou ao cão na cumplicidade da fuga, vestiu o casacão de lã que a mãe lhe moldara ao corpo anos antes e de sapatos na mão fez-lhes o imenso manguito do desprezo.

Já na rua, recordou Ary, e sentiu-se um homem só, na cidade. Se pudesse, em cada aniversário bastar-lhe-ia a companhia dos filhos, a foto da mãe e o cheiro da sua Lisboa desaparecida. Amália, também, porque a sua voz era o bálsamo onde poderia banhar-se e redescobrir a infância. A mão dele, indefesa, na mão calejada da mãe e os tantos passeios pelas ruelas da cidade, pejada de fados.

Agora, podia lá suportar tanta gente em seu redor. Se ao menos chegassem para minorar a dor imensa de tudo quanto amou e se esfumou em passado. Mas não: o mais que fazem é cobrar, impor, exigir, determinar. E tudo sem dele saberem nada.
Chegam sem avisar e afugentam Guillén, Sabina, Neruda, Rocio Durcal, Fausto ou Brel. E remexem nos livros, analfabetos, exultando com o peso dos volumes. Zelosos urdem conselhos prestimosos: o menino tem que lavar a loiça suja e fazer essa cama de lavado. Onde é que já se viu um rapaz tão descomposto?
De forma, mãe, que só me resta fugir-lhes, sair de onde me querem cordato, previsível. E lembrar-te sempre mais e mais, certo de que um destes dias, quando estiver mesmo sozinho, me vais fazer a alegria de aparecer, tão amiga e carinhosa como quando crescia no teu colo pobre. E eu, tão avesso a milagres, acredito tanto nisso mãe, que até já sei onde iremos passear.

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