
A menina, linda e negra, de olhos meigos e cara serena, brutalmente agarrada por um pequenino furriel de bigode, comando na guerra colonial, não chorou. Nem quando o fio da baioneta lhe foi encostado à garganta pelo furrielzinho valente, que procurava, desta forma, obter a denúncia da existência de «turras» naquela região do Leste de Angola.
A menina, negra e linda, tinha uns oito ou nove anos. Não mais. A sua expressão, assustada mas serena, foi talvez o que mais me impressionou nos longos 26 meses que durou a minha comissão em Angola. Apesar das angústias, das ansiedades, dos medos, dos traumas causados pela presença constante da morte.
Eu encontrava-me a uns cinco metros daquela cena, repulsiva e bela, completamente impotente, mordendo a língua para não gritar a minha vergonha por ali estar, ao lado dos «heróis» armados, atacando aldeias indefesas, incendiando palhotas, ameaçando de morte aquela menina linda, negra, de olhos meigos e rosto sereno.
Que não chorou. Que não gritou. Que balbuciava apenas: - «Não sei». «Não sei».
A menina venceu a batalha.
Os altos comandos que dirigiam a operação ter-se-ão convencido da sua sinceridade, desarmados por aquele rosto sereno e lindo.
Os pais da menina, que estavam a ser interrogados ali ao lado, foram também, por aquela vez, libertados.
Não sei se aquela menina linda, negra, de olhos meigos e cara serena, terá sobrevivido a outras operações do exército colonial, a outros furrieizitos valentes, a outras pontas de baioneta.
Não sei tampouco se aquela família participava activamente na luta pela libertação do seu povo, ou se apenas labutava arduamente para garantir a sua própria sobrevivência.
Mas sei que aquela menina negra, linda, de oito ou nove anos de idade, de olhar meigo e sereno, não chorou.
Perante a ameaça da morte, não implorou. Não ajoelhou nem mendigou o perdão dos seus possíveis algozes.
Por isso sei também que aquela menina, para além da batalha, ganhou também a guerra. Com a sua tez negra. Com o seu rosto lindo. Com os seus olhos meigos. Com o seu ar sereno. E, sobretudo, com a sua coragem de dizer silenciosamente: - «Esta terra é minha!!!»
Adventino Pinheiro de Amaro