sexta-feira, 14 de outubro de 2005

Plano Milagre


"Disse-me um amigo enquanto circulávamos de carro pelas ruas de Havana faz uns dias: «Vêm da Venezuela cada semana em avião. São uns cem ou cento e cinquenta, cada um acompanhado por um familiar. Vêm para curar-se, e vão­‑se embora no mesmo avião, já curados, os que chegaram nas semanas anteriores». «Para curar­‑se de quê?», perguntei­‑lhe. «São cegos. Operam­‑nos, e recuperam a vista».
Não podia acreditar. «Mas, como é que nunca ouvi falar disso?». «Bem, já sabes – disse­‑me –, daqui só se comentam as más notícias». O amigo que me falava não tinha nada de oficial mas podia estar equivocado. Decidi indagar por minha conta. Parecia­‑me estranho que uma informação tão espectacular não circulasse mais. Comecei a interrogar as pessoas bem informadas, e também a alguns amigos venezuelanos. Todos o confirmaram.
«Até agora – disse­‑me um profissional que estava a participar no projecto – preferíamos que não se desse demasiada publicidade. Havia um processo eleitoral na Venezuela, o referendo revogatório, e não queríamos que se pudesse pensar que isto se fazia com intenções eleitorais. Teriam acusado Cuba de se intrometer, de maneira indirecta, naquele processo. Por isso, sem que fosse um segredo, também não se anunciou com bombos e pratos. Mas já não, desde o dia 15 de Agosto e depois da vitória indiscutível de Chávez, a informação circula sobre o que chamamos o Plano Milagre. Publicaram-se reportagens e até se realizou um documentário».
Pouco a pouco obtive quase todos os detalhes desta admirável operação. No âmbito dos acordos entre Caracas e Havana, Cuba enviou à Venezuela vários milhares de médicos que se instalaram nas zonas mais humildes, essas favelas em que vivem pessoas até agora marginalizadas e que careciam dos serviços públicos mais elementares. Aí, bairro adentro, onde quase nenhum médico venezuelano queria ir, instalaram pequenos dispensários providos do necessário para dar os primeiros socorros e cuidar das doenças mais correntes. Estes galenos missionários cobram o mesmo salário (modesto) que cobrariam em Cuba, e vivem no mesmo bairro com os seus pacientes. Com frequência detectam doenças graves da pobreza que eles, com os seus poucos recursos, não podem tratar, e enviam o paciente para algum hospital.
Entre estes enfermos, muitos padecem doenças dos olhos e ficaram cegos. Mas são cegos por pobres, porque na maioria dos casos a sua cegueira cura­‑se com facilidade. Por exemplo, quando padecem de cataratas. E como em Cuba há equipas muito especializadas que operam em dez minutos essa afecção, decidiu-se enviar os pacientes, acompanhados de um familiar, a Havana, para ser operados. Tudo gratuito.
Já são mais de cinco mil as pessoas que, deste modo, viveram um milagre e recuperaram enquanto o diabo esfrega um olho a vista depois de decénios de escuridão. A lista dos casos que mais chamam a atenção faz saltar as lágrimas, como a história desse homem que levava mais de trinta anos cego e que, quando lhe retiraram as vendas, viu a sua esposa, com a qual tinha cinco filhos, pela primeira vez. Ou essa senhora, cega durante vinte e oito anos, que por fim pôde ver os seus filhos e os seus netos. Ou esse menino, Samuel, operado de catarata congénita, que pôde por fim ver a sua mãe. Os episódios são milhares, emocionantes e milagrosos como um relato neo­‑realista. Ou como todo o trajecto que vai da cega escuridão à luz."

Ignacio Ramonet
La Voz de Galicia, 13/10/2004

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