Nada como a morte de um grande homem para possibilitar à minúscula gentinha do costume, urubus profissionais que se alimentam, com a sua comprovada indigência moral, cultural, social e política, das ferroadas nas canelas (não podem almejar a mais...) daqueles que, pela sua enorme envergadura, lhes são de outra forma inacessíveis.Não fosse a ocasião de grande respeito e recolhimento e a sonora gargalhada seria a melhor resposta a tão ridículas criaturas. Nem vale a pena, sequer, fazer qualquer referência aos doutores Alberto João Jardim, Jaime Nogueira Pinto e quejandos. Esses não pertencem a este filme, estão fora do prazo desde o dia 25 de Abril de 1974, nada de perder tempo com tais coisas porque o espaço é curto e a paciência não abunda.O que eu quero mesmo é comentar aquela obsessão que assaltou alguns jornalistas da nossa praça que, a cada passo, perguntam aos seus painéis de entrevistados (todos tão cuidadosamente escolhidos, graças a Deus e à economia de mercado, que até enternece...) se Álvaro Cunhal foi (é) um vencedor ou um derrotado.É claro que a resposta é quase unânime. Álvaro Cunhal perdeu todos os combates, foi derrotado em toda a linha e o grande vencedor foi Mário Soares. Esta tese foi defendida com grande veemência, aliás, pelo doutor Jorge Coelho naquele programa da Sic – Notícias que dá pelo nome de Quadratura do Círculo, exemplo do pluralismo e da decência que é apanágio da nossa comunicação social, onde têm acento permanente apenas representantes do PS, do PSD e do CDS. Ora bem. Com o obrigatório e protocolar respeito pela opinião do doutor Jorge Coelho, (a cobardia dos constantes ataques dirigidos ao PCP neste programa por todos os seus intervenientes, sem que este se possa defender, é uma outra questão), eu discordo em parte dela.De facto, para a resposta ser séria e baseada em factos sustentados, é necessário primeiro saber-se qual foi e para que foi a luta de um e de outro. E é por isso que eu penso que ambos foram vencedores.Não tenho problema nenhum em considerar Mário Soares um vencedor, porque alcançou quase todos os objectivos que nortearam a sua actividade política. Foi primeiro ministro, presidente da república e deputado europeu, só tendo falhado uma presidência lá nas europas por razões que ele não entendeu e o deixaram despeitado, como teve oportunidade de o demonstrar na altura.São vitórias de “pirro” que a história não vai perder tempo a lembrar, dir-se-á. Pois são... mas foi para isso que o homem lutou, foi para isso que se especializou na venda da banha da cobra, não se lhe pode exigir mais...O caso de Álvaro Cunhal é bem mais complexo e não sei bem se o doutor Jorge Coelho e os outros que defendem a sua tese estarão em condições de o compreender.Toda a vida de Álvaro Cunhal foi dedicada, sem nada pedir em troca para si, à luta persistente pela libertação e emancipação do povo português, pelo fim da exploração do homem pelo homem, por uma sociedade mais justa onde o rico não seja cada vez mais rico e o pobre cada vez mais pobre. Em suma, por uma sociedade socialista.Uma luta destas, toda a gente sabe, pode atravessar, e atravessará seguramente, várias gerações. Álvaro Cunhal deu, no seu tempo, um contributo incomparável a essa luta. Que teve avanços significativos, graças à acção corajosa e determinada de um grande colectivo que Álvaro Cunhal dirigiu. E que vai prosseguir. E que acabará vencedora, por muito que os defensores da barbárie capitalista pensem ter chegado ao fim da história. Por isso, a luta de Álvaro Cunhal, que não acabou ainda, sairá vitoriosa, porque ele continuará ao lado daqueles que a prosseguem. E nessa altura, dos autoproclamados “vitoriosos” de hoje já ninguém se lembrará.PS: (nem de propósito...) Estive há dias a rever o debate televisivo de 1975, entre Álvaro Cunhal e Mário Soares. A determinada altura, M. S. acusou o seu opositor de que este queria impor um socialismo ditatorial, ao contrário de si próprio, cuja luta era a da construção do socialismo, sim, mas com liberdade.Não perdendo mais tempo com a calúnia, mil vezes repetida, da primeira parte desta afirmação, detenhamo-nos na segunda. M. S. queria construir, também ele, o socialismo. E, segundo os Jorges Coelhos que tenho vindo a referir, Mário Soares é um vencedor e Álvaro Cunhal um vencido. O que vem comprovar a minha tese de que a luta de M. S. era outra e aqueles senhores sabem-no bem. A não ser que se considere que o “socialismo em liberdade” de M.S. é esta vil miséria que se vê hoje em Portugal...
Adventino Amaro
(Esta “carta” foi enviada para a secção “Cartas ao Director” do jornal Público, cujo ele – Director- não a fez publicar. Naturalmente...) 13/7/05 11:36
2 comentários:
Pedro,
"A VERDADE A QUE TEMOS DIREITO!"
Por tudo isto, e tanto que nos tem dado. Este Blog,tinha mesmo que existir.
Parabéns e obrigado.
Um abraço,
GR
Ao Adventino Amaro,
Parabéns, pela análise do texto, pena que os leitores não o tenham usufruído.
A censura, é a democracia dos media, no Portugal de hoje!
Talvez seja tempo de a areia sair do entulho da memória da resistência (nomeadamente da sua componente mais eficaz, determinada e sacrificada – o PCP), mostrando o branco, o negro e o cinzento dos homens e mulheres que - carnes, nervos, inteligências e almas – construíram o não ao fascismo. Em grandezas, no assim-assim e até em algumas misérias, mor das vezes em altos e baixos. Como é próprio de qualquer projecto humano, sobretudo se o dizer não exige tudo de cada um que se submeta como pessoa ao projecto de sacudir a opressão nefanda. Para que, pelo menos, conheçamos as pessoas que permaneceram na luta e para quem temos a dívida da liberdade de hoje (independentemente de se saber se era esta a liberdade por que lutaram). Também para que este povo tenha direito à sua memória.
Há um absurdo monstruoso na vida e na militância dos membros do PCP. Dão-se a um Partido, lutam pelas suas causas, levantam o punho e bandeiras rubras, orgulham-se do passado de luta e do objectivo do seu ideal, cantam as suas canções, manifestam-se, fazem greves, votam e angariam votos, cumprem tarefas, são disciplinados e organizados, comovem-se com os seus dramas e alegrias, tratam-se por tu em sinal de camaradagem, olham para onde acham que devem olhar, seguem em frente, resistem, acham que vêm do Bem e que procuram o Melhor, sem O Partido sentir-se-iam órfãos, mas não conhecem a história do seu Partido e, assim, são militantes sem direito a passado e a memória. Eles e os outros, porque a memória é uma questão de cidadania e, assim, respeita a toda a sociedade.
Não faz sentido algum que o Partido que se arroga como tendo o património de glória de transportar consigo o melhor da humanidade e da tradição de afirmação da dignidade do povo português, continue a ocultar a sua história. Pior, filtrando-a para debitar este ou aquele episódio, maltratando a memória com os tratos da propaganda. A explicação para este fenómeno insólito só pode encontrar-se na decisão mantida de servir mitos, lendas e mentiras, como xarope para a fé, servir-nos os heróis, os santos e os mártires (verdadeiros ou construídos) e deixar os vilões, as vilanias, os injustiçados e a injustiça, na sombra mais profunda. Para anular qualquer risco de um demónio sair santo ou vice-versa? Como se alguém lúcido pudesse acreditar que um passado que exigia o limite de cada um, numa organização clandestina e acossada, só revelasse o bem humano, isento de luta pelo poder, sacanice, desenrascanço, traição, vacilação e compromisso. Mas, quem sabe, talvez um dia o PCP resolva apresentar-se como partido de humanos. Até lá, a vontade de ter memória também mostra a sua energia. Tanto mais que os que foram grandes Partidos Comunistas europeus já abriram os seus arquivos aos historiadores (casos do PCF e do PCI) como vai acontecendo com os arquivos do PCUS. E se, por cá, os que mais sabem nada contam, ou contam como convém contar, vai valendo (com os riscos inevitáveis da falta de rigor e da fantasia) aqueles que se dispõem a narrar um naco aqui e outro acolá.
Francisco Paula de Oliveira (Pável) foi Secretário-Geral do PCP e caluniado internamente e junto do Komintern. Hoje, está mais que provado que Pável foi vítima de uma nefanda calúnia (a propósito da sua evasão do Aljube) que funcionou como sua morte política enquanto comunista e de que se aproveitou (aproveitando as circunstâncias ou fazendo por elas) uma alternativa de liderança. Pável refez a sua vida no México e morreu amargurado porque sempre houve escusa (ou recusa) de fazer justiça (a ele e à história do PCP). Mas a honra de um homem não morre com o seu corpo. A dívida para com Pável continua a pesar na construída e alimentada amnésia histórica. Até um dia.
Entretanto, aqui fica, sobre Pável, a transcrição de um depoimento de Edmundo Pedro encontrado no excelente blogue do João Pedro George:
”Foi operário comigo nas oficinas do Arsenal de Marinha, que era uma oficina de elite. Todos os operários eram obrigados a frequentar a Escola Industrial. Em nenhum outro estabelecimento fabril era assim. Havia todo um conjunto de pessoas de grande craveira intelectual. Lembro-me do Alfredo “Pasteleiro”, conheci-o quando era aprendiz numa oficina metalúrgica situada na rua do Salitre. Foi ele quem me deu a ler os primeiros manifestos comunistas. O Francisco Paula de Oliveira, que foi Secretário-Geral do PCP e Secretário-Geral da Juventude Comunista, tomou o pseudónimo de Pável, o nome de uma personagem de um romance do Máximo Gorki, A Mãe. Era conhecido pelos amigos como o “Viagens à Lua”. Era a alcunha que lhe davam no Arsenal, porque era um tipo que se interessava por ficção científica, viagens à lua, etc. Esteve preso no Aljube mas fugiu. Foi para Paris e fugiu depois para o México, onde se radicou com o passaporte de um combatente da Guerra Civil que tinha morrido, António Rodriguez. Tornou-se escritor e um grande crítico de arte. Foi uma grande figura da cultura mexicana. O México fez-lhe uma homenagem nacional pela contribuição que ele deu à cultura mexicana. Não é qualquer um. É um caso que dava um romance fabuloso. Depois do 25 de Abril, o Mário Soares convidou-o a vir cá. Tenho fotografias dessa visita.”
19/8/05 20:49
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