quinta-feira, 21 de setembro de 2006

À minha filha Rita, que fez recentemente três anos, o poema de um amigo e camarada

Tu ainda não sabes as cores. Não sabes essa
coisa tão linda que é a profunda descoberta
do arco a que chamam íris. As nossas
viagens solitárias nos combóios do país, levavam
nos teus olhos a dolorosa interrogação das
cores que as coisas têm, o loiro dos teus cabelos
no loiro das searas àquele tempo, a fértil e
sadia comunidade das paisagens. As ruas
são as ruas para ti, porque tu não conheces
ainda esse mistério enorme que é a cor do
asfalto, a cor da casa, do grito, do gesto azul
do homem isolado no meio da cidade,
à procura no cinzento do céu daquela chuva,
as heróicas razões da existência. Porque tu
ainda não sabes as cores, ainda não sabes o
rigoroso vermelho com que pretendemos construir
este país, o vermelho das nossas bandeiras
nas concentrações operárias, a vermelha bóina que
o irmão ostenta à frente das crianças da
escola camarária. Porque as flores que me ofereces
nos fins de semana têm o perfume que sentes,
a linguagem que os livros lhe atribuem e as cores
que tu ainda não sabes. Porque este país que construímos
para ti, não se resolve com a cor do amor que te
dedico, nem com o verde daqueles que fogem ao
tempo da fábrica, da campina e da difícil linguagem
da fome do povo. Chove a branca chuva do inverno
que passamos e os meninos vão à rua brincar nos
grandes rios das goteiras da cidade. Homens e
mulheres dão quotidianamente ao negro que suportam
a cara lavada e firme, a coragem e o peito aberto
da resistência. Somos nós a construir as cores do
país que vamos oferecer-te. Porque vermelho é o que sei,
é vermelho que te dou. Mas porque não sabes ainda as cores,
as cores te ofereço todas, mas só vermelho encontro
para o encontro das tuas mãos com as mãos
que sou hoje, em lágrimas, voz grande deste pai
que sou para ti, voz alta nas varandas, nas
bancadas, nos largos onde o povo ergue os punhos,
mas terno e vermelho também quando hoje te oferece
um beijo na praça branca desta página.


Poema de Sérgio Bento, meu colega de trabalho e camarada, infelizmente já falecido. Escrito em 14/12/76, o poema foi dedicado à Inês - filha do Sérgio - no dia em que fez cinco anos.

4 comentários:

Maçã de Junho disse...

Que lindo!
Ou estou muito sensivel ou a beleza também pode ser saúdada com uma lagrimazitas no canto do olho!
Lindo

Paulo disse...

Incendiaram-me a infancia..biblioteca de sonhos...
Nunca recebi uma carta assim...ao invés senti a áridez dos desencontros, o pó da estrada....
Afinal, eu nunca pedia em demasia..queria somente um abraço de verdade....e nada mais....
Hoje sei que ainda há estrelas que nos fazem ir atrás delas...na ilusão de que samos iguais a tantos outros....e, logo nos percebemos que o sonho, só mesmo o sonho, comanda a vida (diz o poeta).
Gostei do blog. obrigado

Abraço
Paulo

Maria disse...

Parabéns Rita, embora atrazados.
O poema é lindo, fica comigo.
Obrigada Pedro!

Dijambura disse...

Mensagens de amor, de luta, de magia....perpetuam-se e aplicam-se para sempre em determinadas situações da vida...a imortalidade é isso ;) Paabéns Rita!