sexta-feira, 17 de março de 2006

O PROCESSO


Já lá vão três anos e alguns bocejam. Protestam que a confusão nunca mais termina. Denunciam as testemunhas por não apresentarem provas do que afirmam. “Nem ao menos uma foto” – exclamam, enfastiados. A chatice que isto lhes dá, tadinhos. A máfia, por seu turno, exulta de contentamento: o processo arrasta-se, as vítimas referem intocáveis cuja identidade não podem revelar – a não ser em troca da própria vida, ou da dos filhos – e as vozes dissonantes foram silenciadas.
Surgem, em tribunal, confissões cujo sentido é imediatamente adulterado, num contexto em que o polvo conseguiu calar os que defendem as vítimas. Agora só se escuta os que promovem os algozes. A constatação é óbvia: os pedófilos gozam da cumplicidade dos escribas ao serviço de padrinhos.
Neste atoleiro que só favorece os pedófilos, agrava-se até níveis insuportáveis a dor das vítimas. Mas o sistema olha para o lado, como se por já sabermos, tudo estivesse limpo de novo. E não é assim: vítimas de ambos os sexos, selvaticamente abusadas no passado e agora mafiosamente perseguidas e difamadas, continuam à espera de Justiça. Porque todos os dias deparam com os intocáveis que os massacraram. Porque, minuto após minuto, vivem no medo de que falhe a protecção de que ainda beneficiam. Ou que ceda a resistência, a heróica resistência que lhes tem permitido aguardar, pacificamente, que a justiça funcione.
Retorno à confissão que tanta celeuma suscitou: se tudo quanto se sabe pudesse ser dito, terramoto seria uma expressão branda para o desabamento do sistema putrefacto que persiste em afirmar-se democrático. A separação de poderes já foi: magistrados de joelhos, salivando por poder, benesses e mordomias, são quadro recorrente. Pedófilos e cúmplices, emporcalham órgãos de soberania, e em poses altivas que escondem as vidas duplas que tantas crianças destruíram, opinam, decidem em causa própria, apagam registos e apontam os alvos a abater. E com os bolsos a abarrotar de dinheiro, babados de raiva por terem sido apontados pelas vítimas, querem reescrever a história à luz de decisões judiciais que encomendam a partir dos respectivos domicílios.
Isto não é roteiro de filme de terror: é Portugal no seu pior. Perante isto, o que resta? Resistir e lutar. Por mim, continuarei a fazê-lo.

2 comentários:

Sérgio Ribeiro disse...

Depois de te ler, Pedro, apenas posso acrescentar palavras como amizade, solidariedade.
E... abraços

(um dia destes, na Som da Tinta, uma jovem, que se deslocava apoiada em duas canadianas, entrou e, com alguma timidez, perguntou se tínhamos o livro do Pedro Namora, daquele senhor que aparecia na televisão. Saltei da cadeira onde estava ao computador, acompanhei-a à estante, entreguei-lhe o livro, tentei conversar, falar de ti; só venceu vencer um pouco da timidez quando lhe disse que tinhas estado ali a apresentar o livro e a conversar connosco, e pediu para a avisar se lá voltasses. Saiu com o livro debaixo do braço e eu fiquei alguns minutos a olhar para o computador, dedos em descanso, a viver uma certa maneira de estar contente com a vida.)

Unknown disse...

Obrigado Guida e Sérgio. Quando penso no que têm sido estes anos de luta contra a barbárie, uma das coisas que mais me reconforta, me alegra profundamente, é ter descoberto a vossa amizade e solidariedade constante.
Por isso, acho que o nosso é também "O Caminho das Aves", e estou certo de que sem o vosso apoio tudo teria sido bem diferente para pior.