Acordou de madrugada com uma ideia fixa. Afinal, começamos a morrer quando esquecemos que fomos crianças. Esquecemos o medo de perdermos a mão que nos guiava pelas ruas da cidade, o escuro medonho que escondia fantasmas esperando algures o momento de estarmos sós, o temor de tudo, os monstros que pejavam cada parede escura e que nos sitiava por baixo de leçóis e cobertores.
De repente, ou será paulatinamente?, desconhecemos o medo de que descobrissem as traquinices que fazíamos, o medo de termos medo. O medo de sermos grandes.
Perdemos o futuro quando esquecemos os pedidos ingentes que fazíamos, as birras habituais, os sonhos que nos moviam frágeis mas determinados. Esquecemos o medo de que não gostassem de nós, de que não nos dessem presentes ou nos envergonhassem perante os outros.
Começamos a definhar quando troçamos do que pensávamos em pequenos: o barquinho ao longe fugido de uma banheira citadina, o Superman sempre protector ou a moedinha da sorte. O medo do rídiculo macera-nos a carne condoída de uma noite em branco e os compromissos, transformam-nos em autómatos.
Sermos uma espécie em decomposição não nos deixa fruir o tempo em que nada tínhamos para fazer. A não ser brincar.
Acordou triste, magoado, exausto. A luz do candeeiro realçou-lhe as olheiras carregadas, os lábios irresolutos, os cabelos ralos. A lembrança dos baloiços no Alvito, o avião revestido a ferrugem em que sobrevoou oceanos imaginados, o cavalinho de papel, o pião carcomido no alcatrão da escola, os guelas de todas as cores e tamanhos, tudo lhe acentuava o mal estar.
De forma que se vestiu à pressa, bebeu uma caneca de leite com chocolate, calçou os ténis quase novos e acelerou o carro com direcção certa. No parque dos índios, o preferido dos filhos, a escuridão guardava tudo, mas não hesitou e tateando a rede, galgou-a sem esforço, com os sentidos despertos e um frio intenso na barriga obesa. Sentiu medo de ser apanhado, mas sorriu. O guarda jamais o surpreenderia... O piar de uma ave noctívaga, porém, estremeceu-o de pavor e correu a refugiar-se nas tendas cilíndricas.
Apache ou Sioux? Decidiu-se Baden Powel e urdiu planos para mil caminhadas. Salvaria os animais todos do planeta, e com um fósforo queimado desenhou o símbolo da paz no pulso enérgico. Nao sabe sequer como adormeceu, mas ao acordar no exterior da tenda, seres disformes gritavam sons inintelegíveis.
Persistiu num mutismo deliberado. Não lhe arrancariam palavra. Correu a manga da blusa para esconder a tatuagem e nem o silvar estridente da ambulância lhe indicou o local onde se encontrava. Deitado no chão pejado de papoilas e azedas, foi enterrando lentamente as mãos na terra molhada. E não demorou a sentir os músculos revigorados e um calor a incendiar-lhe de força o peito forte.
Quando a personagem de estetoscópio ao pescoço lhe perguntou o nome, depois de comentar ,com um ser igual, que "só lhe apareciam malucos", encheu os pulmões e suavemente trauteou a canção que muitos anos antes ensinara aos filhos: "Uma gaivota voava, voava, asas de vento, coração de mar..." e irradiando felicidade, deixou-se conduzir na padiola das urgências à casa onde os adultos encerram as crianças que renascem tarde.
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