quinta-feira, 5 de novembro de 2009

Desabafo

Mordeste o pão duro que deus amassou, mas não choraste a desdita como tantos. Perdeste filhos , pais e o passe social da carris e do metropolitano. Perdeste a novela das onze e um quarto, como ressalvas sempre a salivar.
Mas não esqueceste o telefonema dos “bjinhos” e dos “bigadas”, para os amigos com cédula e certidão de interesses. Lavas a boca com dystron ou com lixívia e comes ovos moles e risos descabidos. És uma farra, amigo e o teu avô jogava ao berlinde no rossio galando actrizes porno na ginjinha, porque a arte de fugir é um desafio que derrete mesmo a alma da madrinha.
Tanta coisa errada - não é meu asno? - tanta miséria e tu, um primor, vestes o paletó, dás dois peidos na escada e vais à vidinha a palitar os dentes de desprezo pelos pobres que afugentas do passeio.
A  tua dama a gastar-te o salário no casino, o teu clube falido, os pombos decrépitos fazem-te chorar - és um coração de manteiga, é o que é - mas esqueces a cara da avó a apodrecer no cadeirão coçado , o lar da ameixoeira grande, deserto de gente como tu, o cheiro a mijo, as fraldas com merda de semanas, coladas à parede como post-it acusadores.
A mesma velha que repele as tuas visitas semestrais, o teu ar de quem chegou com cara de quem não volta mais, o teu nojo colado à camisa em grossas gotas de suor. Ou será medo?
Tu ali, colado a ela, na ânsia da sopa que não chega, dos remédios que apressem a morte, a mesma janela, o mesmo rio parado, o mesmíssimo cheiro e os teus pombos que não dizem, que não grasnam, indiferentes aos latidos que protestas.
Tu ali esquecido, amnésico, com a âncora do cachucho dourado a colar-te ao cadeirão usado a majestade, a pedires para mijar às operárias que te ralham e simulam afazeres.
Não são tuas as lágrimas que te rasgam o focinho contrariado, não é teu o murmurar de sangue arrependido. Não há verniz que esconda o vilão que foste, não há poses que salvem o bandido.
Resta-te o deus que mesura por interesse as almas vis. De forma que ajoelhas, simulas estar ausente de pecado, entoas ladainhas mirando o altar onde também cerejeira e Salazar se prostraram – esses cabrões que tanto recomendas – e guinchas impropérios contra a culpa dos que não te entendem a bondade.
Perdoai-lhe, senhor!

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